21.1.10

O temor

Não posso negar que havia um pinguinho de dúvida no ar. Nós sempre gostamos de coisas certas e confirmadas. Fizemos hoje um amplo teste de medidas e informações sobre a nossa pessoinha (fazia tempo que não escrevia esse termo). Enquanto o médico fazia as seguidas análises, crescia minha ansiedade. Estava esperando, contando os segundos, atendo-me aos mínimos detalhes. Uma gota de suor caiu quase em cima do computador quando percebi como ele se referia à pessoinha só usando masculino.
Pedi desculpas, mas o desespero não se esvaiu. Pensei na cor do quarto que havíamos escolhido, todas as roupas compradas e presenteadas, os minibiquinis, as sainhas, vestidinhos, sapatinhos vermelhos. Tudo seria inutilizado. Peguei meu telefone para descobrir os locais de doação para as vítimas do Haiti. E fiquei ainda mais nervoso porque não achava o endereço. Fiquei triste quando imaginei aquela roupinha favorita nossa pendendo no lixão de Brasília. Que desperdício. E nada do médico enunciar a senha mágica. Nada, o tempo se passou, nada, o relógio batia aos microssegundos. Estávamos há 32,5 minutos na sala e nada de ele confirmar.
A Cau era só felicidade com os batimentos cardíacos, os dois rins, o estômago, o coração com atrios e ventrículos, perninhas e mãozinhas com 20 dedos. Tudo na mais perfeita ordem, menos o pai, que suava. Tive me desculpar uma segunda vez quando o pingo de suor caiu na calça do médico. Foi quando ele percebeu. Como redenção, ele perguntou a cor que havíamos pintado o quarto. Ouvi a demanda em câmera lenta, como se estivesse no filme Matrix. Eu poderia pegar cada letra que saía de sua boca.
A Cau respondeu com um lindo e enorme sorriso "lilás". Ele retrucou com um "hmmmmmmmm". O médico voltou os olhos para o computador e pediu para olharmos as duas coxas do bebê. De novo, não conseguia ver nada. Só pensava no tempo todo que passei escrevendo Beatriz, falando com o bebê como se fosse uma menina. Arrependi-me profundamente. Comecei a pensar nos amplos danos psicológicos na minha "pessoinha". A Cau não, diferente do pai, era pura felicidade. Olhou as coxas da pessoinha, e o médico apontou o meio. Pensei comigo, é agora. Os fatos se revelarão, qual é o telefone mesmo de doação das vítimas do Haiti? O médico fez uma nova pausa. Eu respirei e não ouvi nada. Estavam os dois, a Cau e o médico, sorrindo. Será que sorriem de constrangimento? Será que a Cau está constrangida? Que sorriso é esse? Será felicidade ou contrição? Continuei surdo e minha visão prejudicou-se. Ouvi no fundo o eco de "é lilás ás ás". Imaginei os dois apontando os dedos para mim. Era culpa minha. A cor, a cor errada. Tudo desperdiçado.
O médico aproximou-se do perfil da pessoinha na tela do computador. Perguntou qualquer coisa para a Cau. Eu continuava cabisbaixo. Ele começou a digitar pausadamente um nome qualquer na tela. B E A T R V E L. Pensei que catso? Marvel, quadrinhos? Que nome é esse? É latim? Depois vi o médico apagando letras e recompondo o nome. Ouvi passarinho verde cantando, som de fogos de artifícios estourando. Foto tirada e foto oficial. Nosso bebê de perfil com o nome em cima: B E A T R I Z. Todo sofrimento esvaido, todo esforço de um mês útil. Nossa filhinha é a Bia!!!!!!!

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